Publicado no Tribuna do Brasil de 6/10/2006
Caderno TBprograma, Coluna Psicoproseando...com Maraci
Li na Folhaonline que "...os resultados gerais das eleições de domingo indicam que a mentalidade do "rouba, mas faz" ainda tem uma forte aceitação no eleitorado brasileiro. A avaliação foi feita por Silke Pfeiffer, diretora regional das Américas da Transparência Internacional, organização que se dedica ao combate à corrupção...".
Algumas vezes ouvi "rouba, mas faz". Nessas ocasiões, senti um misto de raiva, pena e desesperança, uma vontade louca de sacudir as criaturas pelos ombros, gritando: "Não! Não é por aí! Essas pessoas têm a obrigação de fazer sem roubar! Ninguém está autorizado, sob nenhuma hipótese, a ser desonesto!".
Quem pensa assim me faz lembrar do meu grupo de terapia para mulheres vítimas de relacionamentos amorosos abusivos. Muitas vezes, em consultório, ouvi coisas do tipo: "Ele briga, humilha, faz da minha vida um inferno, mas nunca me bateu"; "Ele passa o fim de semana bêbado, mas é um pai maravilhoso"; "Ele costuma me agredir quando se droga, mas nunca deixou faltar nada em casa"; "Ele me trai, mas está sempre pedindo perdão, dizendo que é louco por mim".
As autoras dessas frases são mulheres presas a parceiros problemáticos. Essas tentativas de minimizar a dor, como a da primeira declaração; de tapar o sol com uma peneira, como a da segunda; de compensar o que não pode ser compensado, como a da terceira; ou de acreditar contra todas as evidências, como a da quarta, são típicas. Todas estão passando por um processo depressivo tão violento que perderam a noção do que lhes está acontecendo. Sofrem terrivelmente, esgotadas, sem perspectiva, incapazes de se salvarem sozinhas.
O trabalho que desenvolvo com o grupo "Para sobreviver a um grande amor" não é fácil, mas é simples. Quase todas as pacientes são orientadas a procurar um psiquiatra, para tratar também quimicamente a depressão. Isso permite que o cérebro, já tão debilitado pelo estresse, seja recuperado. Paralelamente, com a psicoterapia, elas aprendem a, num primeiro momento, enxergar, como um todo, o processo em que estão envolvidas.
A visão do conjunto permite a análise da situação. Será que nunca ter sido agredida fisicamente torna brando o fogo do inferno em que se vive? Será que alguém que passa o fim-de-semana bêbado pode ser considerado um pai maravilhoso? Será que ser um bom provedor autoriza um homem a se drogar e agredir mulher e filhos? Será que pedidos de perdão e juras de amor diminuem a dor de quem foi traído?
Será que quem pensa "rouba, mas faz" não estaria precisando de um tratamento? Parece coisa de gente deprimida, sem auto-estima, sem perspectiva. Parece coisa de quem busca minimizar o ruim, como se isso o fizesse bom; tapar o sol com uma peneira, como se isso fosse possível; compensar aquilo que não pode ser compensado; acreditar contra todas as evidências. Parece coisa de quem não tem noção do que está acontecendo.
Quem aceita um representante que "rouba, mas faz" não está em situação muito diferente da de quem acha vantagem nunca ter apanhado do companheiro carrasco; de quem não tem idéia do que é um pai maravilhoso; de quem se arrisca e expõe os filhos à violência de um viciado; de quem se consola com pedidos de perdão e promessas de amor vazios.
Tudo isso resulta do desconhecimento do valor que temos. Muitas dessas mulheres foram "treinadas" pelas próprias famílias e pela sociedade para agüentar firme esse tipo de situação. Da mesma forma, nós brasileiros fomos "treinados" para suportar o abuso a que temos sido submetidos desde a chegada dos portugueses ao Brasil. Acho que vale a pena refletir sobre isso. Até a próxima sexta-feira !
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