24 de novembro de 2008

A manobra do seu Biu e os investimentos não-financeiros


Publicado em 11/10/2008, no site do Correio Braziliense, Blog do Vicente Nunes,
coluna A Psicologia e o Dinheiro


“Isso é uma forma didática de explicar a crise americana: O seu Biu tem um bar, na Vila Carrapato, e decide que vai vender cachaça "na caderneta" aos seus leais fregueses, todos bêbados, quase todos desempregados. Porque decidiu vender a crédito, ele pode aumentar um pouquinho o preço da dose da branquinha. O sobrepreço é o que os pinguços pagam pelo crédito. O gerente do banco do seu Biu, um ousado administrador com emibiêi, decide que as cadernetas das dívidas do bar constituem, afinal, um ativo recebível, e começa a adiantar dinheiro ao estabelecimento tendo o pindura dos pinguços como garantia. Mais adiante, uns seis zécutivos de banco lastreiam os tais recebíveis e os transformam em CDB, CDO, CCD, UTI, OVNI, SOS, PQP ou qualquer outro acrônimo desses usados pelo economistas e afins, que ninguém sabe exatamente o que significam. Esses adicionais instrumentos financeiros alavancam o mercado de capitais e conduzem a operações estruturadas de derivativos, na BM&F, cujo lastro inicial ninguém conhece - as tais cadernetas do seu Biu. Esses derivativos são negociados como títulos sérios, com fortes garantias reais, no mercado de 73 países. Até que alguém descobre que os bebuns da Vila Carrapato não têm dinheiro pra pagar as contas. O Bar do seu Biu vai à falência e toda a cadeia se dana.”

O texto acima me foi enviado por um amigo da época da Caixa, o Luis Guadanhim. Desconheço a autoria, mas reconheço que ele é ótimo, inclusive porque mostra como uma manobra banal, que todo dono de boteco conhece, pode gerar um problemão. No caso, o seu Biu calculou mal ou nem calculou os riscos de vender fiado. As vendas certamente aumentavam, já que os fregueses, empolgados com a facilidade de não precisar pagar à vista, bebiam cada vez mais. Em contrapartida, as chances de ele vir a receber só diminuíam. Os bebuns que estavam empregados caminhavam a passos largos para o desemprego; os que estavam desempregados viam as oportunidades de emprego passarem lá longe. O resultado disso poderia ter ficado restrito à falência do seu Biu e à desgraceira dos fregueses. Mas a coisa foi mais longe.

O gerente do banco em que seu Biu mantinha conta, já fazendo planos com o dinheiro que acreditava poder ganhar com a tal caderneta, resolveu entrar no negócio, mas parece também não ter analisado o cenário, prendendo-se apenas aos recebíveis, que aumentavam a cada dia, graças à desgraça dos cachaceiros. E os tais dos zécutivos, então, nem se fala - ouviram o galo cantar, mas não se preocuparam em saber onde. Acreditando que o gerente tinha descoberto o negócio da China, incrementaram uma cadeia de transações a partir do quê? Eles não sabiam, mas a partir da expectativa de que bêbados desempregados ou prestes a perder o emprego honrem dívida de boteco. Por mais que os fregueses do seu Biu lhe fossem leais, e por menos que eles tivessem a intenção de lhe dar o calote, não dava pra confiar nessa bondade por muito tempo, não é mesmo? Como disse a minha irmã, Maristela, ações de longo prazo não podem se basear em pressupostos de curto prazo.

Resumindo, toda aplicação exige planejamento, que não pode prescindir da análise de cenário e risco. Isso vale pra investimentos financeiros ou não. Se você pensa se casar, por exemplo, fique atento! Observe o namoro. Se ele vai bem, as coisas estão fluindo, o casamento pode dar certo, embora não haja total garantia. Se o casamento vai bem, as coisas estão fluindo, ter filhos pode ser enriquecedor, embora também não haja total garantia. Os prós e os contras exigem respeitoso exame e cada fase requer uma nova análise porque a decisão de incrementar uma cadeia demanda embasamento. E nada de dar uma de zécutivo, bancando a maria-vai-com-as-outras. O mundo está lotado de gente que, por imprudência, baseada em pressupostos de curto prazo, quebrou a cara tal qual os bancos americanos. Valeu, Guadanhim! Valeu, irmã! Até sábado, leitores!

Maraci Sant'Ana

17 de novembro de 2008

As máscaras e a lava

Série “O dinheiro e os relacionamentos” – 4ª. parte

Publicado em 4/10/2008, no site do Correio Braziliense, Blog do Vicente Nunes,
coluna A Psicologia e o Dinheiro


Desde 23 de agosto, quando foi publicada a 1ª parte da série, chegam comentários inspiradores. Um deles foi postado pela leitora Sandra, que disse o seguinte: “... acho dinheiro muito bom. E, em minha opinião, não é ele que interfere na vida das pessoas. Simplesmente o dinheiro revela o caráter das pessoas. Quem tem caráter continua a ser uma pessoa correta, independentemente da quantidade de dinheiro que tem. Agora, os que são mau-caráter se revelam rapidamente quando o dinheiro entra no meio.”

Sandra,

Há muitos anos, quando ainda cursava Psicologia, um professor me disse que a gente não conhece o parceiro quando com ele se casa, mas quando dele se separa. Em outras palavras, é nos momentos de crise, ou seja, de desequilíbrio, dúvidas, tensão, conflito, transição, que as pessoas se mostram como são. Temos, então, a oportunidade de saber se e, também, o quanto a criatura que se nos apresenta naquele momento tem a ver com aquela que acreditávamos que ela fosse. Tudo pode acontecer! Em situações como a que você citou, dizemos que a pessoa se revela como é verdadeiramente.

O ser humano é gregário por natureza. É na vida em sociedade que aprendemos e ensinamos. E graças a essa troca é que efetivamente crescemos. Só que, para conviver, precisamos desenvolver algumas características que, aqui, chamarei de máscaras. Sem elas não seríamos pelos outros suportados, assim como também não toleraríamos nem sequer nossos pais e filhos, pelo menos não no nível em que o conseguimos agora. Sem as máscaras que hoje usamos, as relações seriam mais tumultuadas. São elas que nos permitem aceitar os outros e sermos aceitos pelos diversos grupos a que pertencemos.

Entretanto, apesar da óbvia utilidade, as máscaras não costumam ser bem-vistas. Com elas vem a idéia de fingimento, de algo artificial, não-natural. E, considerando que somos seres da natureza, a de que elas não se sustentam todo o tempo ou em qualquer situação. Sempre chega o momento em que caem, por não terem o poder de anular, apenas de disfarçar o que em nós é incompatível com a vida em comum. Assim, tal qual a lava no momento da erupção, tudo o que se tentava esconder sob a máscara vem à tona. Creio que foi isso o que você quis dizer quando escreveu que as pessoas revelam, rapidamente, seu caráter mau.

Temos aqui duas idéias – a de máscaras e a de lava. Ambas nos incomodam porque deixam claro que os seres humanos temos uma parte aceitável, mas também uma inaceitável. E, por mais que nos consideremos sociáveis, não podemos negar que temos nossos “pecados”. Como todo mundo, em alguns momentos, em determinadas situações e com certas pessoas, somos admiráveis. Em outras oportunidades, somos horríveis, podendo ter comportamentos idênticos àqueles que não suportamos nos outros, que tanto nos incomodam, indignam.

As máscaras são instrumentos de que lançamos mão para caminhar da forma menos rude possível até que delas não mais precisemos. E a lava é que indica, com precisão, sem rodeios, as máscaras que nos estão faltando e o que necessitamos mudar em nós mesmos. Se eu acreditasse na existência do mal, diria que ele não habita nem as máscaras nem a lava, já que tudo está a serviço da nossa transformação em criaturas plenas. Valeu, Sandra! Valeu, irmã! Até sábado, leitores!

Maraci Sant'Ana

9 de novembro de 2008

Ou não

Publicado em 27/9/2008, no site do Correio Braziliense, Blog do Vicente Nunes,
coluna A Psicologia e o Dinheiro


“No mercado acionário, é preciso estar preparado emocionalmente para enfrentrar as adversidades.” Essa frase é destaque da coluna do professor e consultor de investimentos Mauro Halfeld, publicado na revista Época de 11 de agosto em resposta a pedido de orientação feito por um leitor que se confessou apavorado por ver seu dinheiro evaporar a cada dia. Segundo Halfeld, quem investe em ações costuma comprar na alta e vender na baixa porque pouca gente aceita ser solitária; é difícil manter uma estratégia que vá na contramão do mercado – comprar pechinchas quando todos estão vendendo e vender quando todo mundo está indo às compras; mas quem tiver sangue-frio e convicção em relação a sua estratégia, além de desprendimento para enfrentar o barulho da multidão, provavelmente colherá bons resultados.

Essa conversa de contramão me fez lembrar uma outra que tive recentemente com minha irmã. Estávamos rindo de algo de que já não me recordo quando lhe disse que, quando era bem jovem, sonhava ter um marido; depois que tive meu filho, passei a fantasiar um marido que também fosse pediatra; alguns anos depois, comecei a idealizar um que fosse cirurgião plástico; hoje, acho que o mais indicado seria um psiquiatra; e alguma coisa me diz que, se eu tiver sorte, chegará o dia em que pedirei a Deus um geriatra para marido. Será que isso significa andar na mão?

Ao ouvir isso, minha irmã, ponderou que estava tudo errado e que minha primeira mancada tinha sido sonhar com um marido. Se eu não tivesse tido nenhum, talvez nem tivesse filho e, portanto, não fantasiaria um pediatra. Também talvez houvesse me sobrado mais tempo e dinheiro para simplesmente pagar um cirurgião plástico e um psiquiatra que, de repente, nunca chegassem a ser realmente necessários. Esse papo dela me deixou meio na dúvida. Estaria ela certa? Será que isso é que não significaria andar na mão?

Mas, daí, fiz outro raciocínio – se eu já não precisasse de um psiquiatra quando era bem jovem, talvez nunca tivesse desejado um marido, ou filho, ou pediatra ou cirurgião plástico. Se a gente parar um pouquinho pra pensar, isso tudo é coisa pra doida e uma mulher só entra nesse rock and roll se estiver muito pirada, ou não, como concluiria o grande filósofo Caetano Veloso. Será que isso é que é andar na contramão?

Como vocês já devem ter sacado, para casar, assim como para aplicar na bolsa, a gente precisa ter estratégia, convicção, desprendimento, fé no futuro, coração forte e paciência para manter os objetivos de longo prazo e não sair na hora errada. E, se você já estiver casada, pense que, até no mercado financeiro, mais cedo ou mais tarde, a razão acaba por voltar. Assim, o mesmo deverá acontecer na sua vida, a você, ou não.

Estão achando que me esqueci do geriatra, não é mesmo? Pois estão enganados. Esse a gente deve começar a freqüentar o quanto antes. Assim, pouco trabalho a ele daremos, quando dele realmente precisarmos. Valeu, irmã! Até sábado, leitores!

Maraci Sant'Ana

3 de novembro de 2008

Sobre pais, filhos e heranças

Série “O dinheiro e os relacionamentos” – 3ª. parte


Publicado em 20/9/2008, no site do Correio Braziliense, Blog do Vicente Nunes,
coluna A Psicologia e o Dinheiro




A coluna de 23 de agosto trouxe o seguinte comentário do leitor AMARAL: “... Realmente as pessoas estão apegadas demais a dinheiro, só pensam nisso, perderam os valores... Imagine que, perto de minha casa, um pai nem havia sido enterrado e já estavam brigando pela partilha de bens.”

Amaral,

Quando morre um pai ou uma mãe, esperamos ver os filhos tristes. Foge a nossa compreensão que, num momento assim, os pensamentos deles estejam voltados para algo diferente de saudade. Entretanto, nem sempre é o que acontece. Por esses dias, li, num livro Espírita, que as relações familiares costumam ser complicadas porque cada indivíduo se manifesta de forma única; e que natureza e educação conspiram para criar um efeito de superposição entre as criaturas, mas os ajustes ainda não são perfeitos, embora um dia venham a ser não obstante a ignorância que nos cerca e preenche. Não conheço a história por você trazida, mas, no que se refere ao relacionamento entre pais e filhos, acho que valem certas observações.

Penso numa criança como alguém que sofrerá a influência dos adultos que a cercarão e da sociedade como um todo, mas que, ao nascer, já trará uma bagagem formada ao longo de muitas vivências. Assim, não é possível prevermos a forma como esse ser vai lidar com dinheiro, por exemplo. Ela poderá estar ou não de acordo com a criação que a ele for dispensada, porque não temos o controle que imaginamos ter sobre nossos filhos. Isso não significa que podemos simplesmente “lavar as mãos” e deixá-los por conta própria. Ao contrário, temos o dever de caprichar, sem perder de vista que eles aprendem principalmente com nossos exemplos.

Vivemos num mundo cada vez mais exigente quanto a “ter”, em prejuízo do “ser”. Além disso, idealizamos, para nossas crianças, uma vida materialmente tranqüila. Por essas e outras é que tanta gente se empenha em acumular. Quem deixou bens é alguém que já os tinha e se preocupou em preservá-los, pelo menos em parte, ou que construiu um patrimônio, tentando ser previdente. Mas há quem já inicie a vida profissional pensando na aposentadoria, na velhice, na morte, no que deixará para os filhos que possa vir a ter. Em outras palavras, estamos sujeitos a errar na dose e, não raramente, trabalhamos tanto que mal olhamos para os nossos filhos. Daí que eles podem crescer com uma visão bem distorcida do valor de coisas como relações familiares e dinheiro, independentemente de serem eles mesmos os alvos de nossos esforços e boas intenções.

Não dá para afirmar que foi isso o que aconteceu com seu vizinho. Mas não é nada difícil localizarmos, em nosso cenário, pais que, tentando escrever certo, terminam se atrapalhando nas linhas tortas e passando aos filhos a idéia de que era esta sua única ou principal missão com eles – a de prover de matéria. Assim, uma vez que eles deixarem de existir fisicamente, perderão essa capacidade e, portanto, o valor. Seus lugares passarão a ser ocupados pelos bens que puderem transmitir aos herdeiros.

Só não se ressintirão com tudo isso aqueles que conseguirem se movimentar de acordo com suas crenças mais íntimas, que fizerem pelos filhos mais do que a sociedade prescreve, que deles respeitosamente nada esperarem e que deixarem a vida com o sentimento do dever cumprido. Valeu, Amaral! Valeu, irmã! Até sábado, leitores!

Maraci Sant'Ana