31 de dezembro de 2003

Dormindo com o inimigo

em debate - Maraci Sant’Ana

Especial para o Correio - Publicado em 28/12/2003.

Recentemente, o Linha Direta exibiu a história de dois jovens que se conheceram quando ele passou a trabalhar e residir na cidadezinha onde ela vivia com os pais e irmãos. Para conquistá-la, freqüentava a casa da família e os encantava com a leitura da Bíblia e pequenas gentilezas. Em dois meses, já estavam morando juntos. Mas o que parecia ser um lindo caso de amor durou apenas mais dois meses, tempo suficiente para ela descobrir que o “homem da sua vida” tinha mulher e filhos na capital e, embora em liberdade, respondia a processo por assalto a mão armada. Independentemente das explicações, ela o deixou. E ele, por vingança, estrangulou a irmã dela, de apenas 12 anos.

Essas histórias são comuns. As pessoas apaixonam-se e se entregam a quem mal conhecem. Partem do princípio de que o outro é bom, levadas pelo romantismo. Cegas, tomam como verdade o que é dito pela pessoa por quem estão apaixonadas, como se esse sentimento bastasse como garantia. E o resultado de se envolver com um desconhecido pode ser passar por situações terrivelmente dolorosas.

Um banco, ao conceder um empréstimo, uma loja, ao fazer uma venda, uma empresa, ao contratar um empregado, não se baseia no que o cliente ou candidato aparenta ou diz ser, exigindo informações e referências. No entanto, pessoas recebem em suas casas, em suas camas, verdadeiros desconhecidos dos quais só sabem aquilo que a respeito deles imaginam ou o que por eles foi dito. E assim arriscam suas vidas e as de pessoas próximas.

Não estou dizendo que devemos iniciar um relacionamento preenchendo fichas cadastrais. Mas não podemos permitir que uma paixão nos cegue a ponto de não tomarmos um mínimo de cuidado. Mesmo pessoas capazes de despertar em nós belos sentimentos são apenas seres humanos, com qualidades e defeitos, não criaturas sublimes que vieram a este mundo para nos fazerem felizes.

Na história, foi a esposa traída quem telefonou alertando que o jovem tinha família e era perigoso. E ele argumentou dizendo que ela não passava de uma ex-mulher vingativa. É verdade que o mundo está cheio de gente que faria qualquer coisa para impedir a felicidade de antigos amantes. Mas será que devemos rejeitar qualquer referência vinda de um ex? Será que tantas mágoas, ao fim de um relacionamento, não merece atenção?

Conhecer parentes, amigos, trabalho, casa, filhos e, se possível, os ex das pessoas com as quais iniciamos um relacionamento é vital. E deixemos de lado idéias sem sentido do tipo: “Se ele freqüenta a igreja ou se conhece a Bíblia, é uma pessoa boa”; “Se é médico, psicólogo, assistente social, pastor ou policial, está acima de qualquer suspeita”. Cada caso é um caso.

Também precisamos ouvir nossa voz interior, aquela que nos avisa que alguma coisa está errada quando nosso parceiro ausenta-se sem deixar contato; ou reluta em nos apresentar à sua família ou amigos; ou leva uma vida que não combina com a atividade profissional que diz ter; ou tem um ou mais ex, ou mesmo parentes próximos, que o odeiam.

Precisamos conhecer com quem nos relacionamos, especialmente com quem nos relacionamos amorosamente. Sei que essa prática não combina com o amor romântico. Entretanto, um relacionamento precisa ser construído em bases sólidas, só obtidas com parceiro confiável. Vivemos num mundo onde as pessoas procuram estar bem informadas. Entretanto, quando pisam o terreno do amor, não se sentem à vontade para buscar informações sobre o parceiro, seu passado, seus hábitos. Isso é sentido como prova de desconfiança. Mas a vida nos mostra a importância desse cuidado. E se nos sentimos constrangidos em nos proteger, a ajuda de um terapeuta pode ser indispensável.

Encontrar nossa alma gêmea é o que todos queremos. Mas o sonho pode se transformar em pesadelo se nos deixarmos guiar pela fantasia ou necessidade desesperada de sermos felizes. Nem mesmo em nome do amor podemos abrir mão de uma postura responsável que pode garantir nossa integridade física e mental, que pode salvar vidas.

Ciúme: doença da alma

em debate - Maraci Sant’Ana

Especial para o Correio - Publicado em 10/8/2003.


‘‘Sentimento doloroso que as exigências de um amor inquieto, o desejo de posse da pessoa amada, a suspeita ou a certeza de sua infidelidade, fazem nascer em alguém...’’. Essa definição, tirada do Novo Dicionário Aurélio, serve apenas como ponto de partida para falarmos de algo que conhecemos muito bem. Assim como o amor, o ciúme é tema de músicas, poesias, peças teatrais, novelas. E, se você nunca o sentiu, pode aguardar, pois é uma experiência da qual ninguém escapa. Afinal, somos humanos.

De um jeito ou de outro, todos já tivemos contato com o ciúme e temos pelo menos uma idéia a respeito de para onde ele pode nos conduzir. Há vezes em que ele é totalmente justificado. Outras, completamente infundado. Mas, independentemente da razão, faz sofrer. Sentir ciúme é uma experiência única que pode nos proporcionar da tristeza leve à depressão profunda, do sentimento de impotência ao ódio que nos faz pensar que somos poderosos e nos leva a cometer loucuras.

Há situações ‘‘reais’’, de ameaça ‘‘verdadeira’’, que podem gerar ciúme e requerem cuidadosa análise para que possamos tomar uma decisão. E há situações em que as suspeitas são ‘‘imaginárias’’, o que não as faz menos sofridas. Os envolvimentos afetivos têm grande importância nas nossas vidas. Qualquer ruptura provocará dor e deixará cicatrizes, o que sempre lutaremos para evitar. E, nessa luta, o ciumento torna-se infeliz e, muitas vezes, agressivo, podendo desenvolver comportamentos neuróticos, cercado por idéias e suspeitas tormentosas, vendo inimigos em toda parte.

O ciúme é uma doença da alma. E as enfermidades da alma procedem de experiências desagradáveis que nos levam a uma postura de reserva, de cautela, e até mesmo negativa. Se vivenciamos uma ou mais situações de perda da pessoa amada, com ou sem traição, e esses conflitos não são solucionados, a imaturidade não nos permite uma afetividade estável, saudável, completa. Traumas dessa natureza passam a nos acompanhar como fantasmas que arrastam correntes. Se não os encararmos, eles não nos deixarão em paz.

Mas pode ocorrer da enfermidade ser resultante de nossas próprias condutas, anteriores ou atuais. A maioria dos infiéis, por exemplo, morre de medo de ser traída. Assim, o indivíduo projeta no outro culpas que são suas, suspeitas infundadas em relação às pessoas com quem convive, sempre temendo, inconscientemente, provar do próprio veneno ou ser desmascarado.

A dor que o ciúme gera pode ser curtida solitariamente, em silêncio, no máximo nos levando a uma educada discussão. Mas também pode ser bradada aos quatro ventos, muitas vezes resultando escândalos e até vingança, inclusive violenta. Ela é capaz de, rapidamente, colocar-nos em contato com nosso lado obscuro, onde estão escondidos e de onde são evocados os demônios de nossa incapacidade de suportar uma possível perda, tornando-nos criaturas cercadas por idéias e suspeitas apavorantes.

E não poderíamos falar em ciúme sem mencionar o famoso triângulo amoroso. Essa estrutura tem uma importância tão grande na experiência sentimental do ser humano que, mesmo que não haja um terceiro elemento que se intrometa na relação a dois, muita vezes o fantasiamos, levados pelo medo que freqüentemente acompanha o amor. É terrível imaginarmos que o ser por nós amado está envolvido ou pode vir a se envolver com outra pessoa. Que dor tormentosa pensarmos que outro está tendo tudo aquilo que, um dia, pensamos que seria só nosso para sempre. Podemos sofrer a ponto de sentirmos dor física, muitas vezes descrita como uma punhalada no coração.

De qualquer forma, se não conseguimos superar um acontecimento ruim a isso relacionado, devemos procurar ajuda. Os acontecimentos reais ou imaginários não devem controlar nossas vidas. Às vezes, resolve conversarmos com alguém mais experientes em quem confiamos. Às vezes, é necessário ajuda profissional, até mesmo intervenção médica, já que, não raro, o ciúme é resultante da disfunção de substâncias químicas fundamentais para o bom funcionamento do nosso cérebro. Se há um desequilíbrio, as capacidades de enxergar as coisas da vida, fazer julgamentos e tomar decisões ficam prejudicadas. Nesses casos, o tratamento com medicamentos e a psicoterapia são indispensáveis. E os resultados podem ser surpreendentes.

Não obstante nossas decepções e mazelas, reais ou imaginárias, a vida continua. Muita gente, por permanecer em conflito, não se permite afeição alguma, nem se doando nem a aceitando. Muita gente nem se acredita merecedora de afeição, mas todos a merecemos, sendo fundamental passar pela experiência e desenvolvê-la. O ser que não confia e que se recusa a amar, por medo, ficará isento de muitas "preocupações", mas estará privando-se de outras tantas coisas, que são maravilhosas.


4 de setembro de 2003

rascunho

Publicado em 26/7/2008, no site do Correio Braziliense, Blog do Vicente Nunes,
coluna A Psicologia e o Dinheiro



A economia do Brasil vem crescendo e, com ela, as oportunidades de trabalho. Segundo a coluna Emprego S/A, do Bom Dia Brasil de 10 de julho, só em maio deste ano surgiram 172 mil novas vagas – 66 mil nas nove maiores regiões metropolitanas e 106 mil no interior. Em Jeceaba, município de Minas Gerais, por exemplo, uma das siderúrgicas mais modernas do país vai gerar 7.500 empregos, número muito maior do que o de habitantes.

Como dito na reportagem, a qualificação é importante, mas o atributo mais valorizado, na hora da contratação, é a disposição para aceitar desafios. Porque raramente essas oportunidades estão logo ali, na esquina de casa. Ao contrário, estão espalhadas pelo país, às vezes bem longe, e exigem que o candidato tenha visão, coragem, disposição, desprendimento, amadurecimento, para se arriscar numa mudança.

Muitos acreditam que, uma vez que se profissionalizaram, graças a um curso técnico ou superior, estão garantidos, o que não é verdade. Ter uma profissão, um ótimo salário, morar bem, numa cidade maravilhosa, cheia de recursos e diversões é o sonho de todos nós. Mas não é assim que a banda toca. Esses paraísos consagrados não costumam ter vagas dando sopa. Neles, a concorrência é muito grande. E o resultado disso é gente frustrada por trabalhar em área diferente da de sua formação, ou reclamando sem parar das altas exigências e dos baixos salários.

Esses desavisados ficam por ali, como que pregados na cidade onde nasceram ou cresceram, incapazes, muitas vezes, de se descolar dos familiares, freqüentando a mesma roda de amigos, indo aos mesmos lugares e se lamentando por não conseguirem emprego. Alegam falta de sorte, que o mercado está difícil, que a economia está recessiva. Sem conseguirem se movimentar de forma diferente, parecem cachorro correndo atrás do rabo - não saem do lugar e ainda ficam exaustos.

É preciso ter visão e ousar. Lembro de uma conversa com meu filho quando ele tinha uns oito anos. Eu lhe disse que faria uma poupança para que ele pudesse estudar numa grande universidade, até mesmo nos Estados Unidos ou na Europa, se fosse o caso – coisa de mãe coruja de filho único. Só que ele me surpreendeu ao revelar que não poderia estudar nem mesmo no Brasil, já que estaria morando numa estação espacial de Marte.

É claro que ninguém precisa mudar para Marte. Aliás, espero que o meu baby nunca se transfira pra lá. Se for assim, corro o risco de sair daqui para o nascimento de um neto e só chegar pro aniversário de um ano. Mas Jeceaba é bem ali. Essa gente precisa se mexer, desmamar. O Brasil é muito grande e há lugares necessitando e muito de profissionais já prontos ou com vontade e coragem para se preparar.

E pra ajudar a animar essa galera, deixo um trecho de Nos bailes da vida, de Milton Nascimento: “Cantar era buscar o caminho que vai dar no sol. Tenho comigo as lembranças do que eu era. Para cantar nada era longe, tudo tão bom. 'Té a estrada de terra na boléia de caminhão. Era assim. Com a roupa encharcada e a alma repleta de chão. Todo artista tem de ir aonde o povo está. Se foi assim, assim será. Cantando me desfaço e não me canso de viver, nem de cantar”. Valeu, irmã! Até sábado, leitores!