em debate - Maraci Sant’Ana
Especial para o Correio - Publicado em 10/8/2003.
‘‘Sentimento doloroso que as exigências de um amor inquieto, o desejo de posse da pessoa amada, a suspeita ou a certeza de sua infidelidade, fazem nascer em alguém...’’. Essa definição, tirada do Novo Dicionário Aurélio, serve apenas como ponto de partida para falarmos de algo que conhecemos muito bem. Assim como o amor, o ciúme é tema de músicas, poesias, peças teatrais, novelas. E, se você nunca o sentiu, pode aguardar, pois é uma experiência da qual ninguém escapa. Afinal, somos humanos.
De um jeito ou de outro, todos já tivemos contato com o ciúme e temos pelo menos uma idéia a respeito de para onde ele pode nos conduzir. Há vezes em que ele é totalmente justificado. Outras, completamente infundado. Mas, independentemente da razão, faz sofrer. Sentir ciúme é uma experiência única que pode nos proporcionar da tristeza leve à depressão profunda, do sentimento de impotência ao ódio que nos faz pensar que somos poderosos e nos leva a cometer loucuras.
Há situações ‘‘reais’’, de ameaça ‘‘verdadeira’’, que podem gerar ciúme e requerem cuidadosa análise para que possamos tomar uma decisão. E há situações em que as suspeitas são ‘‘imaginárias’’, o que não as faz menos sofridas. Os envolvimentos afetivos têm grande importância nas nossas vidas. Qualquer ruptura provocará dor e deixará cicatrizes, o que sempre lutaremos para evitar. E, nessa luta, o ciumento torna-se infeliz e, muitas vezes, agressivo, podendo desenvolver comportamentos neuróticos, cercado por idéias e suspeitas tormentosas, vendo inimigos em toda parte.
O ciúme é uma doença da alma. E as enfermidades da alma procedem de experiências desagradáveis que nos levam a uma postura de reserva, de cautela, e até mesmo negativa. Se vivenciamos uma ou mais situações de perda da pessoa amada, com ou sem traição, e esses conflitos não são solucionados, a imaturidade não nos permite uma afetividade estável, saudável, completa. Traumas dessa natureza passam a nos acompanhar como fantasmas que arrastam correntes. Se não os encararmos, eles não nos deixarão em paz.
Mas pode ocorrer da enfermidade ser resultante de nossas próprias condutas, anteriores ou atuais. A maioria dos infiéis, por exemplo, morre de medo de ser traída. Assim, o indivíduo projeta no outro culpas que são suas, suspeitas infundadas em relação às pessoas com quem convive, sempre temendo, inconscientemente, provar do próprio veneno ou ser desmascarado.
A dor que o ciúme gera pode ser curtida solitariamente, em silêncio, no máximo nos levando a uma educada discussão. Mas também pode ser bradada aos quatro ventos, muitas vezes resultando escândalos e até vingança, inclusive violenta. Ela é capaz de, rapidamente, colocar-nos em contato com nosso lado obscuro, onde estão escondidos e de onde são evocados os demônios de nossa incapacidade de suportar uma possível perda, tornando-nos criaturas cercadas por idéias e suspeitas apavorantes.
E não poderíamos falar em ciúme sem mencionar o famoso triângulo amoroso. Essa estrutura tem uma importância tão grande na experiência sentimental do ser humano que, mesmo que não haja um terceiro elemento que se intrometa na relação a dois, muita vezes o fantasiamos, levados pelo medo que freqüentemente acompanha o amor. É terrível imaginarmos que o ser por nós amado está envolvido ou pode vir a se envolver com outra pessoa. Que dor tormentosa pensarmos que outro está tendo tudo aquilo que, um dia, pensamos que seria só nosso para sempre. Podemos sofrer a ponto de sentirmos dor física, muitas vezes descrita como uma punhalada no coração.
De qualquer forma, se não conseguimos superar um acontecimento ruim a isso relacionado, devemos procurar ajuda. Os acontecimentos reais ou imaginários não devem controlar nossas vidas. Às vezes, resolve conversarmos com alguém mais experientes em quem confiamos. Às vezes, é necessário ajuda profissional, até mesmo intervenção médica, já que, não raro, o ciúme é resultante da disfunção de substâncias químicas fundamentais para o bom funcionamento do nosso cérebro. Se há um desequilíbrio, as capacidades de enxergar as coisas da vida, fazer julgamentos e tomar decisões ficam prejudicadas. Nesses casos, o tratamento com medicamentos e a psicoterapia são indispensáveis. E os resultados podem ser surpreendentes.
Não obstante nossas decepções e mazelas, reais ou imaginárias, a vida continua. Muita gente, por permanecer em conflito, não se permite afeição alguma, nem se doando nem a aceitando. Muita gente nem se acredita merecedora de afeição, mas todos a merecemos, sendo fundamental passar pela experiência e desenvolvê-la. O ser que não confia e que se recusa a amar, por medo, ficará isento de muitas "preocupações", mas estará privando-se de outras tantas coisas, que são maravilhosas.
Um comentário:
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