Publicado em 29/8/2009, no site do Correio Braziliense, Blog do Vicente Nunes,
coluna A Psicologia e o Dinheiro
coluna A Psicologia e o Dinheiro
“Tendo Jesus entrado na casa, a multidão novamente se aglomerara. A essa notícia, seus parentes vieram para detê-lo, pois diziam: ‘Ele perdeu o juízo’. Dizem-lhe: ‘Eis que tua mãe e teus irmãos estão lá fora. Eles o procuram’. Ele lhes reponde: ‘Quem são minha mãe e meus irmãos?’. E, percorrendo com o olhar os que estavam sentados à sua volta, diz: ‘Eis minha mãe e meus irmãos. Todo aquele que faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã, minha mãe’”. Essa passagem do Evangelho costuma causar estranheza. Teria o Cristo sido capaz de destratar seus parentes, inclusive Maria? A Doutrina Espírita traz uma reflexão a respeito, a de que o Mestre nos ensinava a importância das afinidades na constituição de uma família. Não devemos ser indiferentes aos laços de sangue, mas entender que eles não são os mais importantes.
Este é o terceiro e último capítulo da minissérie sobre barriga de aluguel. Logicamente o assunto não se esgotou. Mas creio que as questões levantadas ajudaram pessoas a se posicionarem ou, pelo menos, mostraram que muito ainda precisamos pensar a respeito. O texto anterior trouxe a pergunta “O que é ser mãe?”. Foram postados alguns comentários, mas destaco aqui o do leitor José Stélio: “Devemos refletir que somos todos mães, pais, filhos e filhas um pouco uns dos outros. Esses papéis se confundem. Muitas vezes é minha filha que, com sua sabedoria infantil, me consola e educa como se ela fosse o pai; outras vezes, um abraço de um amigo ou amiga me faz recordar do carinho de minha mãe já desencarnada. A questão maior é que devemos amar a todos sem distinção, nos libertando das amarras da consanguinidade, e enxergar toda a humanidade como irmãos”.
Quando minha irmã nasceu, eu tinha só sete anos, mas me sentia meio mãe dela, responsável por sua segurança e bem-estar. Ao entrar na adolescência, eu a deixei um pouco de lado e busquei a irmandade em garotas e garotos da minha idade. Isso se manteve durante a adolescência dela, mesmo porque eu já era adulta e havia adotado outros irmãos. Depois que ela amadureceu, veio a reaproximação, resultado de interesses e preocupações em comum. Além dos laços de sangue, novos laços se estabeleceram entre nós. É possível que, quando eu estiver velhinha, ela venha também a se sentir meio minha mãe, responsável por minha segurança e bem-estar.
No começo do ano, meu filho passou no vestibular da UnB. Corri a telefonar para algumas pessoas ligadas à minha história de maternidade: o pai do meu filho; um ex-marido que meu filho considera um segundo pai; os meus pais, que me ajudaram a criá-lo, quebrando incontáveis galhos; minha irmã, que é madrinha dele, quem escolhi para me substituir quando eu neste mundo não mais estiver; minha tia, que fez o parto, ajudando a criaturinha a vir ao mundo; o pediatra que o acompanhou desde o quarto dia da nova vida; a babá que cuidou dele até os três anos e também o chama de filho; e Tina, que trabalha em nossa casa desde que ele tinha sete anos e muitas vezes lhe pôs o uniforme e levou ao colégio. Posso dizer que meu baby contou vários pais e mães. Se ele tivesse nascido de uma mãe de aluguel, eu certamente teria telefonado para ela, pra contar a grande novidade.
Nesta semana, a revista Nature, em sua edição on-line, publicou estudo de pesquisadores americanos que desenvolveram, usando macacos rhesus, uma técnica para prevenir distúrbios hereditários passados de mãe para filho por meio do DNA mitocondrial. Foram utilizadas duas fêmeas; cada uma cedeu um óvulo; esses óvulos foram manipulados e se transformaram em um só, livre de problemas, que foi fertilizado com sucesso. Os macaquinhos nascidos têm, cada um, duas mães biológicas. E, em breve, humanos também poderão ser beneficiados. Muito louco, não? E a gente aqui, ainda patinando, tentando definir mãe e pai.
Vamos pegar outro exemplo. A mídia tem explorado a história do comediante Carlinhos, muito conhecido pelo personagem Mendigo. Participante de um reality show, ele teve sua vida dissecada. Levaram para a telinha o pai e a mãe do artista, com quem ele não se encontrava havia cerca de 24 anos. Vítima de violência doméstica, Carlinhos fugiu de casa aos quatro anos. Esteve em um educandário, em cinco unidades da Febem e nas ruas. Passou fome e frio, mas, ainda assim, preferiu tudo isso a voltar para casa. Diz ter perdoado os pais, mas já deixou claro que sua família é formada pelos amigos verdadeiros que fez.
Essas situações nos fazem refletir, assim como o comentário de José Stélio. Já imaginou o quanto ele perderia, o quanto sua vida se empobreceria se ele não se permitisse essa abertura, se não fosse capaz de aceitar o consolo da filha, por achar que esse papel não lhe cabe, ou se rejeitasse o carinho de um amigo por lhe faltarem os laços de sangue? Fechar questões não costuma trazer bons resultados. Talvez por isso tendemos ao fracasso sempre que tentamos definir o que é ser mãe ou o que é ser pai. Talvez isso nem possa ser definido, por extrapolar consanguinidade, aspectos financeiros, o tempo e o espaço. Talvez por isso seja tão difícil, em uma disputa judicial que envolva barriga de aluguel, arbitrar quem deverá ficar com a criança. Talvez a chave esteja na capacidade de ampliar o horizonte, de ver além.
Em geral, acontece assim: um homem e uma mulher se unem e geram um novo ser, que deverá ser criado pelos dois, debaixo do mesmo teto; uma relação de parceria, em que eles se organizarão sob vários aspectos, inclusive financeiro, para esse fim. Se, por exemplo, eles decidirem se separar, será necessário rever o acordo, para se estabelecer a quem caberá a guarda do filho e como se darão as visitas e o sustento da criança; se eles não conseguirem se entender, deverão recorrer à Justiça, que definirá as novas regras.
Mas pode acontecer assim: um homem e duas mulheres se unem e geram um novo ser, que deverá ser criado pelo homem e uma das mulheres; uma relação de parceria a três, em que eles se organizarão sob vários aspectos, inclusive financeiro, para esse fim, o que pode incluir, sem o menor problema, pagamento àquela que carregará a criança no ventre. Se, por exemplo, a hospedeira se recusar a entregar o bebê, será necessário rever o acordo, para se estabelecer a quem caberá a guarda do filho e como se darão as visitas e o sustento da criança; se eles não conseguirem se entender, deverão recorrer à Justiça, que definirá as novas regras, inclusive se é cabível a devolução de todo ou de parte do dinheiro, em caso de barriga de aluguel.
Não acho que uma mulher que carregou uma criança no ventre possa ser descartada por ter alugado o útero, da mesma forma que não acho que uma mulher que desejou uma criança e se movimentou para que ela nascesse possa ser colocada à parte, mesmo que não tenha cedido o óvulo para a geração. Vejo aí duas irmãs se revezando no papel de mãe de um terceiro irmão. Assim, vejo com bons olhos a guarda compartilhada, por exemplo, e acredito que o nome das duas deva constar do registro de nascimento, para que nunca haja dúvida ou mistério sobre a origem da criança. As pessoas precisam aprender que toda parceria tem ônus e bônus. É preciso pensar bem antes de se estabelecer uma, qualquer que seja ela. Não é apenas uma questão de pagou, levou.
A ideia lhe parece absurda? Talvez ela seja tão disparatada quanto teria sido, no século XIX, por exemplo, a de uma família em que o casal optasse por não ter filhos; ou a de mães ou pais divorciados criando sozinhos os filhos; ou a de famílias que incluíssem crianças de relacionamentos anteriores. Entretanto, não é isso o que vemos hoje? E a maioria de nós não encara com naturalidade esses novos formatos? Estamos caminhando para o dia em que todos nos veremos como irmãos, em que viveremos como um só.
Lembram do primeiro texto da minissérie? Eu contei sobre um vídeo caseiro em que os dois filhos mais velhos do Michael Jackson, cantavam para ele uma adaptação de You are my sunshine, substituindo sunshine por dad. Papai em lugar de luz do sol! Já imaginou se fizéssemos o mesmo com brothers and sisters? A tradução ficaria mais ou menos assim: “Você é meu irmão. Você me faz feliz quando o céu está cinza. Você nunca saberá o quanto eu o amo”. Não sei dizer se o astro é o pai biológico daqueles que ele chamava de filhos. Mas, sem dúvida nenhuma, ele é um irmão. Para mim, isso basta. Valeu, José Stélio! Valeu, irmã! Até sábado, leitores!
Este é o terceiro e último capítulo da minissérie sobre barriga de aluguel. Logicamente o assunto não se esgotou. Mas creio que as questões levantadas ajudaram pessoas a se posicionarem ou, pelo menos, mostraram que muito ainda precisamos pensar a respeito. O texto anterior trouxe a pergunta “O que é ser mãe?”. Foram postados alguns comentários, mas destaco aqui o do leitor José Stélio: “Devemos refletir que somos todos mães, pais, filhos e filhas um pouco uns dos outros. Esses papéis se confundem. Muitas vezes é minha filha que, com sua sabedoria infantil, me consola e educa como se ela fosse o pai; outras vezes, um abraço de um amigo ou amiga me faz recordar do carinho de minha mãe já desencarnada. A questão maior é que devemos amar a todos sem distinção, nos libertando das amarras da consanguinidade, e enxergar toda a humanidade como irmãos”.
Quando minha irmã nasceu, eu tinha só sete anos, mas me sentia meio mãe dela, responsável por sua segurança e bem-estar. Ao entrar na adolescência, eu a deixei um pouco de lado e busquei a irmandade em garotas e garotos da minha idade. Isso se manteve durante a adolescência dela, mesmo porque eu já era adulta e havia adotado outros irmãos. Depois que ela amadureceu, veio a reaproximação, resultado de interesses e preocupações em comum. Além dos laços de sangue, novos laços se estabeleceram entre nós. É possível que, quando eu estiver velhinha, ela venha também a se sentir meio minha mãe, responsável por minha segurança e bem-estar.
No começo do ano, meu filho passou no vestibular da UnB. Corri a telefonar para algumas pessoas ligadas à minha história de maternidade: o pai do meu filho; um ex-marido que meu filho considera um segundo pai; os meus pais, que me ajudaram a criá-lo, quebrando incontáveis galhos; minha irmã, que é madrinha dele, quem escolhi para me substituir quando eu neste mundo não mais estiver; minha tia, que fez o parto, ajudando a criaturinha a vir ao mundo; o pediatra que o acompanhou desde o quarto dia da nova vida; a babá que cuidou dele até os três anos e também o chama de filho; e Tina, que trabalha em nossa casa desde que ele tinha sete anos e muitas vezes lhe pôs o uniforme e levou ao colégio. Posso dizer que meu baby contou vários pais e mães. Se ele tivesse nascido de uma mãe de aluguel, eu certamente teria telefonado para ela, pra contar a grande novidade.
Nesta semana, a revista Nature, em sua edição on-line, publicou estudo de pesquisadores americanos que desenvolveram, usando macacos rhesus, uma técnica para prevenir distúrbios hereditários passados de mãe para filho por meio do DNA mitocondrial. Foram utilizadas duas fêmeas; cada uma cedeu um óvulo; esses óvulos foram manipulados e se transformaram em um só, livre de problemas, que foi fertilizado com sucesso. Os macaquinhos nascidos têm, cada um, duas mães biológicas. E, em breve, humanos também poderão ser beneficiados. Muito louco, não? E a gente aqui, ainda patinando, tentando definir mãe e pai.
Vamos pegar outro exemplo. A mídia tem explorado a história do comediante Carlinhos, muito conhecido pelo personagem Mendigo. Participante de um reality show, ele teve sua vida dissecada. Levaram para a telinha o pai e a mãe do artista, com quem ele não se encontrava havia cerca de 24 anos. Vítima de violência doméstica, Carlinhos fugiu de casa aos quatro anos. Esteve em um educandário, em cinco unidades da Febem e nas ruas. Passou fome e frio, mas, ainda assim, preferiu tudo isso a voltar para casa. Diz ter perdoado os pais, mas já deixou claro que sua família é formada pelos amigos verdadeiros que fez.
Essas situações nos fazem refletir, assim como o comentário de José Stélio. Já imaginou o quanto ele perderia, o quanto sua vida se empobreceria se ele não se permitisse essa abertura, se não fosse capaz de aceitar o consolo da filha, por achar que esse papel não lhe cabe, ou se rejeitasse o carinho de um amigo por lhe faltarem os laços de sangue? Fechar questões não costuma trazer bons resultados. Talvez por isso tendemos ao fracasso sempre que tentamos definir o que é ser mãe ou o que é ser pai. Talvez isso nem possa ser definido, por extrapolar consanguinidade, aspectos financeiros, o tempo e o espaço. Talvez por isso seja tão difícil, em uma disputa judicial que envolva barriga de aluguel, arbitrar quem deverá ficar com a criança. Talvez a chave esteja na capacidade de ampliar o horizonte, de ver além.
Em geral, acontece assim: um homem e uma mulher se unem e geram um novo ser, que deverá ser criado pelos dois, debaixo do mesmo teto; uma relação de parceria, em que eles se organizarão sob vários aspectos, inclusive financeiro, para esse fim. Se, por exemplo, eles decidirem se separar, será necessário rever o acordo, para se estabelecer a quem caberá a guarda do filho e como se darão as visitas e o sustento da criança; se eles não conseguirem se entender, deverão recorrer à Justiça, que definirá as novas regras.
Mas pode acontecer assim: um homem e duas mulheres se unem e geram um novo ser, que deverá ser criado pelo homem e uma das mulheres; uma relação de parceria a três, em que eles se organizarão sob vários aspectos, inclusive financeiro, para esse fim, o que pode incluir, sem o menor problema, pagamento àquela que carregará a criança no ventre. Se, por exemplo, a hospedeira se recusar a entregar o bebê, será necessário rever o acordo, para se estabelecer a quem caberá a guarda do filho e como se darão as visitas e o sustento da criança; se eles não conseguirem se entender, deverão recorrer à Justiça, que definirá as novas regras, inclusive se é cabível a devolução de todo ou de parte do dinheiro, em caso de barriga de aluguel.
Não acho que uma mulher que carregou uma criança no ventre possa ser descartada por ter alugado o útero, da mesma forma que não acho que uma mulher que desejou uma criança e se movimentou para que ela nascesse possa ser colocada à parte, mesmo que não tenha cedido o óvulo para a geração. Vejo aí duas irmãs se revezando no papel de mãe de um terceiro irmão. Assim, vejo com bons olhos a guarda compartilhada, por exemplo, e acredito que o nome das duas deva constar do registro de nascimento, para que nunca haja dúvida ou mistério sobre a origem da criança. As pessoas precisam aprender que toda parceria tem ônus e bônus. É preciso pensar bem antes de se estabelecer uma, qualquer que seja ela. Não é apenas uma questão de pagou, levou.
A ideia lhe parece absurda? Talvez ela seja tão disparatada quanto teria sido, no século XIX, por exemplo, a de uma família em que o casal optasse por não ter filhos; ou a de mães ou pais divorciados criando sozinhos os filhos; ou a de famílias que incluíssem crianças de relacionamentos anteriores. Entretanto, não é isso o que vemos hoje? E a maioria de nós não encara com naturalidade esses novos formatos? Estamos caminhando para o dia em que todos nos veremos como irmãos, em que viveremos como um só.
Lembram do primeiro texto da minissérie? Eu contei sobre um vídeo caseiro em que os dois filhos mais velhos do Michael Jackson, cantavam para ele uma adaptação de You are my sunshine, substituindo sunshine por dad. Papai em lugar de luz do sol! Já imaginou se fizéssemos o mesmo com brothers and sisters? A tradução ficaria mais ou menos assim: “Você é meu irmão. Você me faz feliz quando o céu está cinza. Você nunca saberá o quanto eu o amo”. Não sei dizer se o astro é o pai biológico daqueles que ele chamava de filhos. Mas, sem dúvida nenhuma, ele é um irmão. Para mim, isso basta. Valeu, José Stélio! Valeu, irmã! Até sábado, leitores!
Maraci Sant'Ana
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