Publicado no site do Correio Braziliense em 27/4/08, Editoria Brasil,
item Terapeuta fala sobre comoção provocada pelo caso Isabella.
A morte de Isabella nos atingiu em cheio. Algo assim nunca passa em brancas nuvens. Entretanto, o clamor público também tem sido destaque. Pessoas mudaram sua rotina para acompanhar o noticiário e algumas se revoltaram a ponto de agir de forma irracional. O que estaria fomentando tanto interesse? Há quem acredite que isso é resultado da exaustiva cobertura do caso. Também há quem pense que a imprensa tem dado às pessoas exatamente o que elas procuram. Mas outras considerações sobre o tema podem ser feitas.
É fato que nos preocupamos com nossa finitude e, ao sabermos que alguém não-próximo morreu, a pergunta “De quê?” é inevitável. Parece que tentamos nos preparar para uma situação para a qual poucos estão realmente prontos. Vivenciar a morte de um estranho talvez nos ajude a lidar com a idéia do nosso fim. E, se houve um crime, além da básica curiosidade, entram em jogo sentimentos como tristeza e raiva, que nos aproximam de outras pessoas também por eles afetadas e estimulam o interesse, o clamor por justiça.
O caso de Isabella é mais complexo. Podemos até suportar homicídios, mas não o assassínio de criança, que tenha como suspeito alguém da família. Somos tomados pelo horror e surge a necessidade incontrolável de acompanhar o caso, uma urgência em saber se as suspeitas se confirmam. Em caso negativo, haverá um certo alívio; em caso positivo, uma sensação de fim do mundo que nos acompanhará por um tempo.
E, como se tudo isso não bastasse, o crime envolveu pessoas que são como a maioria dos que estão acompanhando o caso - de classe média, que se reúnem em família nos finais de semana, vão a supermercado, têm carro, casa e curso superior. Nada a ver com barbáries cometidas em favelas longínquas, por gente miserável, sem nenhuma instrução, com as quais confortavelmente lidamos, fazendo de conta que elas habitam outro planeta.
O quadro é assustador. Já se fala que, no Brasil, a cada minuto, uma criança ou adolescente é vítima de violência doméstica e que, em média, duas crianças são mortas, por dia, por quem delas deveria cuidar. Se esses crimes tivessem a mesma repercussão do caso Isabella, será que suportaríamos o noticiário sem o risco de um colapso nervoso ou de terminarmos nos acostumando a ponto de nos tornarmos indiferentes?
Será que não é menos doloroso eleger, de tempo em tempo, um símbolo dessa nossa dura realidade, como fizemos com João Hélio há um ano e agora com Isabella, para que possamos nos chafurdar na dor e na revolta por todos os absurdos que sabemos que acontecem todos os dias? Ou será que tanta ânsia não tem origem na face sombria, obscura, tenebrosa de nossa personalidade, na porção ignorante que ainda existe em cada um de nós e que pode até nos levar a matar sem piedade?
Maraci Sant'Ana