31 de dezembro de 2006

A importância do que não temos

Publicado no Tribuna do Brasil de 20/10/2006

Caderno TBprograma, Coluna Psicoproseando...com Maraci


Li a notícia da morte de Sandra Arantes do Nascimento, vítima de câncer de mama. Muitos acompanharam a história dessa mulher, conhecida por enfrentar longa disputa judicial para que o Rei Pelé a reconhecesse como filha. Confirmada a paternidade, ela acrescentou, ao seu nome, o do pai.

Segundo a Folha Online, Sandra teria dito, na véspera de sua morte, que um de seus últimos desejos era ver o pai ou receber um telefonema dele. Sua mãe teria entrado em contato com Pelé, sem retorno. Ao velório, compareceram apenas flores que chegaram em nome de "todos os funcionários da empresa Pelé".

O que sei sobre o caso se resume ao que li em jornais e revistas. Não sei o que motivou Sandra a lutar para ser perfilhada. Assim como o que impediu Pelé de reconhecer a filha sem brigas. Mas sei que uma situação estressante como essa pode detonar alguém a ponto desse alguém desenvolver um câncer.

O mundo está cheio de filhos que se sentem incompletos, que vagam por aí tal qual almas penadas, arrastando correntes por pais que não os quiseram. Essas pessoas vivem obcecadas, lutando por um reconhecimento, mesmo informal. Algumas até conseguem o carinho desejado. Mas outras só encontram o mesmo desprezo ou um ainda pior.

Ser amado pelos pais é o que todos queremos. Mas se esse amor nos é negado, o que fazer? Transformar isso numa obsessão, arrastar correntes, desenvolver um câncer? Costumo dizer, em consultório, que a vida da gente deve ser construída como os prédios. Nenhum é erguido sobre uma única coluna. Todos têm vários pontos de sustentação. Assim, se uma pilastra for derrubada, o edifício até ficará abalado, mas não desabará, podendo ser recuperado.

Devemos viver sobre diversos pilares. A família original, a família que formamos, o trabalho, os estudos, um hobby, a religião, os amigos, um relacionamento amoroso, uma atividade voluntária e os filhos são exemplos disso. Dessa forma, se o casamento acabar, sofreremos, mas não entraremos naquela de "Meu mundo caiu e me fez ficar assim...". Se nossa mãe morrer, não nos sentiremos completamente perdidos. Se formos despedidos, encontraremos forças pra procurar um novo emprego. Teremos outras pilastras, que nos sustentarão.

Quando consideramos que nossa vida é formada por um grupo de coisas e pessoas relevantes, procuramos cuidar de todas. Umas podem até ter mais importância. Mas nenhuma será o centro de nossa existência, sem a qual tudo perderia o sentido, a ponto de nos desestruturarmos. E é essa noção de conjunto que nos faz enxergar não apenas o que não temos, mas também o que temos.

Pode ser que alguém que não tenha tido um pai biológico amoroso tenha sido criado por um tio, um irmão ou um padrasto que nada tenha deixado a desejar. Talvez tenha tido uma mãe maravilhosa. Talvez seja um profissional de sucesso, com uma vida confortável, filhos lindos, marido amoroso ou esposa nota dez, uma saúde de ferro ou grandes amigos. Só que tudo isso pode passar despercebido se esse alguém se fixar justamente naquilo que lhe faltou, que é importante, mas não é tudo.

A filha de Pelé não tinha o amor do pai. Mas tinha mãe, marido e filhos, estudava Direito, freqüentava a Assembléia de Deus e, como Vereadora de Santos, conseguiu aprovar um projeto que garante a realização de testes de DNA gratuitamente, para pacientes da rede pública. Ela tinha família e religião, fazia um curso superior e tinha um trabalho que lhe permitia levantar bandeiras importantes. Talvez tenha valorizado excessivamente o que não tinha. Vai fazer falta pra muita gente. Que Sandra encontre a paz! Até sexta-feira!

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