21 de novembro de 2009

Nosso pré-sal


Publicado em 13/9/2009, no site do Correio Braziliense, Blog do Vicente Nunes,
coluna A Psicologia e o Dinheiro


"Queridas brasileiras e queridos brasileiros" - foi assim que o presidente Lula começou o pronunciamento de 6 de setembro último, para celebrar o que ele chamou de uma nova independência do Brasil. Após uma brevíssima introdução, ele entrou de sola no assunto pré-sal. Falou das gigantescas jazidas de petróleo e gás descobertas nas profundezas do nosso mar, dos projetos de lei enviados ao Congresso Nacional que, segundo ele, vão garantir que a maior parte dessa riqueza fique nas mãos dos brasileiros; impedir que os governantes a gastem de forma irresponsável; e assegurar que ela seja investida em educação, ciência e tecnologia, cultura, defesa do meio-ambiente e combate à pobreza.

E lá estava eu, na frente da TV, ouvindo tudo aquilo e pensando no retorno financeiro dos 800 quilômetros de petróleo entre Espírito Santo e Santa Catarina, na proposta de um fundo que, conforme dito por Lula, ajudará o país a pagar a imensa dívida social que temos e evitará a entrada desordenada de dinheiro externo, garantindo-nos uma economia saudável. Foi quando me veio à mente um outro discurso, o de um paciente que me contou estar apaixonado por uma mulher que todos dizem não valer nada, que não corresponde aos seus sentimentos, que o faz sofrer com sua indiferença, mas que ele sabe ser, bem lá no fundo, uma pessoa maravilhosa.

É verdade. As pessoas também escondem tesouros em suas entranhas, debaixo de uma camada de características que podem afastar os outros. Mas sempre há alguém disposto a investir nelas, pronto a atravessar várias sobreposições, a fazer o que fez a Petrobras, que explorou até encontrar algo extraordinário que causou admiração no resto do mundo e deixou os brasileiros orgulhosos de nossa capacidade de enxergar além, de nossa persistência e disposição para o trabalho firme. Só que, entre a Petrobras e esses desbravadores de almas, há enormes diferenças.

A camada pré-sal não foi encontrada por acaso, de graça ou facilmente. Quando iniciou o projeto, a Petrobras já era uma instituição sólida, com mais de 50 anos de existência, presente em quase 30 países, uma das maiores do mundo, responsável por levar o Brasil à autosuficiência em petróleo, que, nem por um momento, deixou de lado o que a sustenta, o que a mantém de pé. Além disso, nela foram feitos investimentos que lhe deram mais condições de aumentar a produção, adquirir plataformas e sondas, modernizar e ampliar refinarias, contratar e treinar pessoal, conquistar o que conquistou.

A exploração cujo resultado está na boca do mundo não foi um tiro no escuro, não foi o primeiro passo dado pela Petrobras. Ela é parte de um planejamento estratégico, diferentemente do que acontece nesses relacionamentos amorosos em que um se aprofunda no outro tentando descobrir algo que pode estar muito além de 7.000 metros abaixo. Uma aventura louca assim costuma terminar em tristeza, sentimento de fracasso, remorso, esgotamento físico, mental e emocional, e, não raramente, de reservas financeiras. Não estou negando que haja bondade em todos. Eu acredito no ser humano, sem exceção, inclusive naqueles dos quais devemos manter distância, evitando qualquer relacionamento que ultrapasse uma piedosa oração.

No limite das nossas forças, devemos ajudar todos os que estiverem dispostos a entrar em contato com seus tesouros. Porém, não nos cabe fazer o trabalho por quem ainda não compreendeu que precisa se movimentar nesse sentido. O petróleo está lá, inerte, abaixo da camada de sal, aguardando quem queira e possa extraí-lo. Mas, quando se trata de pessoas, só elas são capazes de trazer à tona o seu petróleo. E, se elas não estiverem dispostas a tentar, o melhor a fazer é deixar que o tempo, senhor de grande poder, do qual ninguém escapa, encarregue-se de colocar tudo nos seus devidos lugares.

É natural que pessoas cuja riqueza interior ainda está inacessível nos tragam preocupação, mas elas não merecem mais cuidado do que aquelas que, movidas pela necessidade de preencher um enorme vazio interior, que dói profundamente, pelo desespero de encontrar alguém que as ame, lançam-se em uma perigosa viagem que pode até lhes custar a vida. Porque não é o amor que movimenta esses exploradores, mas a dor. Ninguém que não se ame é realmente capaz de amar outra pessoa. Ninguém dá o que não tem.

Antes de empenharmos nossa vida na busca de tesouros alheios, devemos procurar conhecer os nossos. E não estou me referindo apenas às nossas forças, mas também à riqueza das nossas fraquezas, das nossas dores, dos traumas não superados, do que ainda não restou entendido. Não devemos nos lançar, unicamente por nossa conta e risco, em projetos de salvamento, se ainda não fomos salvos. Em alguns casos, o melhor a fazer é manter distância e confiar que a Providência Divina se encarregará de ajudar aquela criatura a trazer à tona sua essência.

Há quem diga que, quando o Brasil conseguir produzir em escala comercial o que há no pré-sal, pode ser que tudo aquilo nem tenha a relevância que tem agora. Todos sabemos que há muitas frentes de pesquisa em busca de fontes renováveis de energia limpa. Obviamente não pode passar na cabeça de qualquer governante que, diante desse cenário alternativo, devemos desprezar o potencial do pré-sal. No entanto, não dá para apostar todas as fichas nisso e esquecer o biodiesel, a energia eólica e a que vem do lixo. A fila das fontes de energia também precisa andar, tal qual acontece nos relacionamentos. Devemos sempre procurar a melhor relação custo x benefício.

Lula falou que o Brasil não tem medo de crescer e que não vai ficar preso a dogmas, a modelos fechados, que a independência não é um quadro na parede, um grito congelado na história, mas uma construção do dia a dia, a reinvenção permanente de uma nação, a caminhada segura e soberana para o futuro. Mensagem bonita e forte que fala de uma postura que exige preparo. É preciso muito mais do que paixão para encontrar tesouros. Valeu, irmã! Até sábado, leitores!

Maraci Sant'Ana

7 de novembro de 2009

Dangerous


Publicado em 5/9/2009, no site do Correio Braziliense, Blog do Vicente Nunes,
coluna A Psicologia e o Dinheiro



Cena 1: um homem chega do trabalho; o filho pequeno corre em sua direção; o homem diz que está exausto, serve-se de uma dose de whisky e se atira, com um suspiro, no sofá; cena 2: uma adolescente sai com a mãe para fazer compras; a mãe experimenta vários jeans; sentindo-se infeliz e se dizendo enorme de gorda, a mãe corre para casa, toma um diurético e um laxante, e começa uma dieta absurda que inclui um coquetel de anfetaminas; cena 3: churrasco em família; com o netinho de um ano no colo, o vovô toma uma cervejinha; achando-se responsável por apresentar à criança “as coisas boas da vida”, ele lhe dá um pouco da bebida; o nenê faz cara de quem não gostou; mas não lhe faltarão oportunidades para se acostumar, já que o próprio pai está louco para que ele se torne um “homem de verdade”; cena 4: um homem chega tarde em casa; ele e a esposa batem boca na frente das crianças; em prantos, ela corre para o quarto, toma alguns comprimidos e dorme como uma pedra. Calma, leitores, não estou virando roteirista. Não são cenas de filme, mas da vida real. Vou explicar melhor.

Em 1991, Michael Jackson lançou o álbum Dangerous, considerado o segundo melhor desempenho de vendas da carreira do cantor, o mais vendido, por um artista masculino, na década. Segundo a Wikipédia, foi a primeira coleção de músicas inéditas lançada pelo astro nos anos 90 e o primeio produto distribuído como parte do contrato recorde de 890 milhões de dólares firmado entre ele e a Sony. A turnê de mesmo nome consagrou Michael como ícone; os clips ficaram entre os mais caros e inovadores da época; Black or White provavelmente perdura como o mais visto e lembrado. É inegável que o Rei do Pop tinha o dom de transformar tudo em ouro, em cifras milionárias.

O carro-chefe do álbum era exatamente a música Dangerous. Ela fala de uma garota perigosa pelo jeito como mexe nos cabelos, por seu rosto e suas curvas, pelo toque e boca suaves; uma deusa em movimento, a inspirar paixão e luxúria; uma mulher persuasiva em quem não se pode confiar, que faz os outros se sentirem na corda bamba, que leva seu dinheiro, joga fora seu tempo, prende em uma armadilha de pecado, faz viver em vão, desperta um desejo irracional; alguém cujo espírito e palavras podem cegar, que faz com que sintamos necessidade de rezar, implorar a ajuda de Deus.

O que o Rei do Pop cantou em Dangerous também serviria para descrever qualquer droga, inclusive as que o viciaram e tiraram de cena prematuramente. A morte do astro chocou o mundo. É inacreditável que alguém como ele tenha se deixado assassinar daquele jeito, por substâncias que o destruíram lenta, mas precisamente. É inacreditável que drogas lícitas, prescritas e administradas por um médico, o tenham arrastado para um fim tão triste. Costumamos pensar em situações parecidas envolvendo drogas ilícitas, usadas loucamente. Mas não foi esse o caso. O que Michael ingeriu naquela noite fazia parte de sua vida, de sua rotina.

Será que isso só acontece com celebridades, gente famosa e cheia de manias? Infelizmente não, como mostram as cenas descritas no primeiro parágrafo deste texto. As perigosas estão por toda parte. Quem não tem em casa uma garrafa de whisky ou umas latinhas de cerveja? Quem nunca acendeu um cigarrinho para acalmar ou clarear o raciocínio? Quem nunca deu, como diz a mãe de uma amiga minha, uma mordidinha em um Lexotan? Quem nunca recorreu a um daqueles médicos horrorosos que receitam bombas para diminuir o apetite? O uso dessas substâncias é tão corriqueiro que elas são vistas como inocentes, como bengalas de que lançamos mão e que podemos dispensar, sem dificuldade, a qualquer momento. Mas elas nada têm de singelas.

Quando pensamos em drogas, vêm à nossa mente a maconha, a cocaína, o crack. Tendemos a esquecer o álcool e o tabaco, assim como os ansiolíticos, os estimulantes, os indutores do sono, os analgésicos, que podem ser encontrados em todas as casas, que não demandam traficantes e esquinas suspeitas, que passam quase despercebidos e terminam sendo usados de qualquer jeito, abertamente, até na frente das crianças. E o resultado é que essas criaturinhas, que, de nós, só deveriam receber os melhores exemplos, crescem acreditando que não é possível uma confraternização sem álcool; que fumar faz um homem mais másculo ou uma mulher mais sexy; que não há nada errado em se tomar um sonífero à noite e um estimulante pela manhã; que, para as dores, há os analgésicos, inclusive as da alma.

O uso de substâncias psicoativas ocorre praticamente desde que o mundo é mundo. E as pessoas as utilizam por razões culturais ou religiosas, por recreação ou como meio de socialização. Muitos apenas as experimentam, mas logo as abandonam; há os que as usam por diversão, em encontros sociais; outros as consomem regularmente, até pra relaxar, mas acreditam que as mantêm sob controle; e há os que já estão claramente dependentes, embora não se vejam dessa forma. Em pouco tempo, uma vida pode se transformar. Começam os fracassos no cumprimento de obrigações; as exposições perigosas; os problemas sociais, interpessoais e legais. Ficam evidentes os danos psicológicos e os físicos. A morte é apenas o último de vários tristes capítulos.

Foi o que aconteceu a Michael. Dessa forma, chegou ao fim uma desastrosa parceria. O médico que aplicou a overdose de medicamentos que matou o Rei do Pop responderá por homicídio e pode ser preso a qualquer momento. E o astro foi, finalmente, enterrado no cemitério Forrest Lawn, na quinta-feira, 70 dias após sua morte, vestido como para um espetáculo, o último por ele protagonizado. O infeliz cardiologista logo será esquecido. Mas, durante muitas décadas, ainda falaremos em Michael Jackson, em seu extraordinário talento, em seu toque de Midas.

Este texto encerra a série sobre o Rei do Pop iniciada nesta coluna, em 27 de junho, com See you later, Michael. Foram discutidos os excessos cometidos por pais que querem se realizar por intermédio dos filhos; a violência doméstica contra crianças; o exercício da Medicina como um comércio; dismorfofobia; abuso sexual; barriga de aluguel e dependência de drogas lícitas. Espero que vocês tenham gostado do que aqui foi debatido, assim como faço votos de que as circunstâncias dessa morte continuem servindo como alerta para todos nós. Que Michael Jackson encontre a paz! Valeu, irmã! Até sábado, leitores!

Maraci Sant'Ana