19 de setembro de 2009

You are my sunshine II

Publicado em 15/8/2009, no site do Correio Braziliense, Blog do Vicente Nunes,
coluna A Psicologia e o Dinheiro


Na semana passada, iniciamos uma discussão a respeito de barriga de aluguel. Como tem acontecido na série sobre Michael Jackson, um assunto que parecia restrito à vida das celebridades mostrou-se parte do nosso cotidiano. Foram levantadas situações e os leitores, convidados a ser coautores. Assim, Selma nos conclamou a levar adiante o debate; Emy trouxe questionamentos sobre a relação entre o feto e a mulher que o carregou no ventre; Ana Carolina, sobre a melhor forma de se educar uma criança, independentemente de como ela tenha sido gerada; Gloria, sobre serem consideradas questões financeiras, legais, contratuais, culturais e sociais, e a necessidade de se garantir o equilíbrio do novo ser; e José Stélio registrou dois comentários, um sobre os desafios da adoção e outro em que sugeriu que fosse discutido o que é ser mãe. E acho que podemos começar nossa conversa de hoje exatamente por aí.

O que é ser mãe? Em uma situação de barriga de aluguel, podemos ter uma mulher que recebeu dinheiro para carregar no ventre e parir uma criança gerada a partir do óvulo de outra. Ou podemos ter uma mulher que foi paga para gerar e parir uma criança que será entregue a outra. No primeiro caso, quem é a mãe? E no segundo? Para muitas pessoas, o vínculo genético é decisivo - a mãe é a que entrou com o óvulo. Não deixa de ser um prisma interessante, mas será que podemos resumir o ser mãe dessa forma? Como ficariam, então, as mulheres que geram, parem e matam seus filhos, ou os condenam à orfandade em uma vida sem amor? Poderiam essas serem chamadas de mãe? E como ficariam as adotivas, as que recebem com amor crianças que foram geradas por outras? Essas não seriam mãe? O que elas seriam, então?

Para outras pessoas, decisiva é a vontade - a mãe é aquela que desejou a criança. Outro ponto de vista a considerar. Mas, como fica a mulher que forneceu a carga genética e a barriga para que alguém viesse ao mundo, mesmo que para ser criado por outra? Será que a participação dela foi assim irrelevante? Já imaginou como seria se a mulher que sonhou com a criança não tivesse encontrado essa outra mulher, em condições de realizar esse sonho, inclusive correndo riscos, até de morte? Como aquele novo ser viria ao mundo? Parece que um nascimento envolve muito mais do que a vontade de ser mãe, não é mesmo?

Também há os que pensam que uma mulher perde qualquer direito à maternidade se recebeu dinheiro para dar à luz uma criança, mesmo que também tenha fornecido o óvulo para fecundação. Será que, dessa forma, podemos resumir o que é ser mãe? Será que tudo se reduz a uma questão financeira? Será que qualquer mulher aceitaria dar à luz uma criança para ser criada por outra? Ou será que algumas não fariam isso nem por todo dinheiro do mundo? Será que uma mulher que aceita esse encargo não é alguém que precisa muito de dinheiro? Isso faz dela uma pessoa menor? Será que todas as que pagam para outra parir seus filhos o fazem por uma impossibilidade de elas mesmas carregarem suas crianças no ventre? Ou algumas apenas não querem passar pelos incômodos de uma gestação? Parece que um nascimento também envolve muito mais do que dinheiro.

Agora, vamos colocar mais lenha nessa fogueira. Há casos de mulheres que pariram, mas se recusaram a amamentar a criança, com medo de estabelecer um vínculo afetivo. Algumas tinham fornecido o óvulo e também alugado o ventre; outras tinham sido apenas hospedeiras. Nesses casos, podemos nos arriscar a dizer que, em qualquer das duas situações, o que pesou para essas mulheres não foram nem os laços genéticos nem o carregar por nove meses, apenas. Talvez, para elas, a relação só se estabeleça no segurar a criança ao colo, no aconchegá-la, no amamentá-la, um momento de rara intimidade. Minha mãe e minha irmã amamentaram os próprios filhos e filhos de outras pessoas. Será que elas também podem ser consideradas mães dessas crianças? O que significa ser mãe de leite? Ou o peso está na combinação dar o útero e dar o peito?

Por outro lado, há quem diga que mãe é a que cria, que dá de mamar, que acalenta, que acompanha nas cólicas, na doença, no nascimento dos dentinhos, nos primeiros passos, nos trabalhos escolares. Nesse caso, como ficam as babás? Muitas mulheres geraram e pariram seus filhos, mas eles são criados por profissionais que ganham para dar mamadeiras, papinhas e banhos; trocar fraldas; contar histórias e brincar; consolar na dor e nos pesadelos. Algumas chegam a ser babás também dos filhos dessas crianças. Será que essa profissional, só por estar sendo paga, é menos mãe do que a mulher que pariu a criança? Será que ela é menos mãe do que alguém que cedeu em aluguel a barriga? Nós não vemos dificuldade em pagar uma profissional para cuidar, com essa intimidade, de nossas crianças. Por que tanto problema em alguém receber dinheiro para hospedar, no ventre, o filho desejado por outra?

Lembram da história em que o Rei Salomão decide uma questão de maternidade? Duas mulheres tiveram filhos juntas; um dos filhos morreu e a mãe dele, inconformada, disputava o sobrevivente com a outra, dizendo-se a verdadeira. Foram até o palácio do Rei Salomão e contaram-lhe a história. Ele mandou chamar um dos guardas e lhe ordenou: "Corte o bebê ao meio e dê um pedaço para cada uma". Falado isso, uma das mães começou a chorar e disse: "Não, eu prefiro ver meu filho nos braços de outra do que morto nos meus", enquanto a outra disse: "Para mim, é justo". Salomão, reconhecendo a mãe na primeira mulher, mandou que lhe entregassem o filho e que levassem a falsa mãe para a prisão perpétua.

O rei poderia ter a certeza da ascendência daquela criança? Certeza mesmo, não. Vamos imaginar que um exame de DNA demonstrasse que a mãe biológica era a que achou justo que se cortasse o bebê. Dá para imaginar Salomão, conhecido por sua sabedoria, entregando a criança a ela? Acho que ele passaria por cima do resultado e daria o bebê à falsa. Nesse caso, o teste era absolutamente desnecessário. Ele partiu da ideia de que a verdadeira era aquela que se dispunha a abrir mão da criança, passando por cima do próprio sofrimento para que ela vivesse, mesmo com outra. E pra você? O que é ser mãe?

Nossa discussão está no começo. Quero muito saber o que você pensa sobre barriga de aluguel. Comente este texto. Divulgue-o. Convoque seus amigos a participar também. O que aqui for dito poderá embasar a decisão daquelas criaturas de Deus que nos representam no Legislativo. Lembre que há vários projetos de lei, para disciplinar a matéria, em tramitação. Então, participe! No sábado, estaremos juntos novamente.

Maraci Sant'Ana

6 de setembro de 2009

You are my sunshine

Publicado em 8/8/2009, no site do Correio Braziliense, Blog do Vicente Nunes,
coluna A Psicologia e o Dinheiro


Não param as notícias sobre Michael Jackson. Por esses dias, assisti a um vídeo caseiro em que os dois filhos mais velhos do cantor, na época com uns três, quatros anos, cantavam para ele uma adaptação de You are my sunshine, substituindo sunshine por dad. Papai em lugar de luz do sol! Uma singela declaração de amor em que Paris e Prince Michael agradecem pelo bolo e pelo sorvete que a pequena família, pai e três filhos, compartilhou naquela noite. Caberia em qualquer comemoração pelo Dia dos Pais. Cenas bonitas, comoventes, não só pela delicadeza das crianças, mas porque o pai está morto e, não obstante a fortuna por ele deixada, os filhos estão órfãos.

É natural que as pessoas tenham reservas quando se fala no relacionamento do astro com os filhos, não apenas pelas denúncias de pedofilia envolvendo outras crianças, de que ele foi alvo, mas porque nenhum dos três parece descendente dele. Além disso, dizem que as crianças foram criadas com a ideia de que não tinham mãe, só pai. É um rolo sem tamanho. O próprio Michael admitiu ter recorrido a uma barriga de aluguel para ter o caçula, Prince Michael II. Segundo o ídolo, ele e a mãe do garotinho não se conheceram. Ela teria cedido o óvulo e a barriga; ele, o espermatozóide. Achou estranho? Quando ele declarou que planejava adotar duas crianças, um menino e uma menina, de cada continente, muita gente ficou encantada com a iniciativa. Mas, quando falou em barriga de aluguel, a coisa mudou de figura.

Michael Jackson não foi a única celebridade a recorrer a barriga de aluguel. Sarah Jessica Parker, conhecida atriz do seriado Sex and the City, e seu marido, o ator Matthew Broderick, também fizeram o mesmo, depois de muita frustração para aumentar a prole, que contava apenas um garotinho de seis anos. Isso só para citar um exemplo. Não dá nem pra saber ao certo quantos famosos e não famosos lançaram mão desse artifício. Na maior parte dos Estados Unidos, como acontece em vários outros países, a barriga de aluguel não é admitida. Mas, na Califória e na Flórida, ela é legalizada, assim como na Índia. As pessoas estão divididas nessa questão.

A internet está cheia de anúncios de mulheres que se oferecem para esse fim. Muitas precisam de dinheiro para o básico, como estudar, comprar uma casa, criar com um mínimo de conforto os próprios filhos. Conforme publicado por UOL Notícias no último dia 12, ceder em aluguel uma barriga, no Brasil, não é tipificado como crime. Entretanto, segundo o médico Pablo Chacel, que é corregedor do Conselho Federal de Medicina, existe uma legislação que impede clínicas de fertilização de implantar embriões em barrigas de aluguel. Aceita-se, sim, a chamada mãe substituta, uma mulher que tenha laços próximos de parentesco com a que não pode ser mãe “pelas vias normais”, que topa emprestar o útero. Não há dinheiro envolvido.

Há casos de avós que carregaram netos no ventre, de tias que deram à luz sobrinhos, incríveis provas de amor. Mas a verdade é que a barriga de aluguel transformou-se em um negócio rentável. Segundo a mídia, alguns centros de medicina reprodutiva, por exemplo, apesar da legislação proibir, dispõem de cadastro de mulheres que querem alugar o útero. Os valores variam de 40 a 100 mil reais. É uma forma de se ganhar, de uma só vez, uma grana que se levaria muito tempo para juntar. Só que questões delicadíssimas estão envolvidas nessas transações. Situações diferentes podem ocorrer.

Vamos imaginar a primeira: um homem e uma mulher cedem óvulo e espermatozóide para que uma criança seja gerada; após a fecundação in vitro, o embrião é transferido e se desenvolve no útero de outra mulher; ele tem a herança genética dos pais biológicos; a gestante é apenas uma hospedeira; após o nascimento, o bebê é entregue aos pais biológicos; a ex-gestante recebe o pagamento pela hospedagem. Agora, vamos imaginar a segunda: um homem cede espermatozóide para que, por meio de inseminação artificial, uma criança seja gerada por uma mulher com quem ele pode nem ter vínculo; o embrião tem a herança genética do pai e dessa mulher; após o nascimento, o bebê é entregue ao pai, que o criará junto com outra mulher; a ex-gestante recebe o pagamento pelo óvulo e pela hospedagem.

Tanto na primeira quanto na segunda situação, tudo saiu conforme combinado. Quem desejou um bebê o recebeu, assim como quem queria dinheiro foi pago. Daí pra frente, os questionamentos se voltarão para como educar uma criança nascida desse jeito. No primeiro caso, ela poderá entender o quanto foi sonhada pelos pais biológicos, que não mediram esforços para trazê-la ao mundo, e que seu nascimento até ajudou financeiramente alguém. Mas, e se ela quiser conhecer a mulher que a carregou no ventre? E, no segundo caso, como se sentirá uma criança sabendo que tem a herança genética de uma mulher que não é aquela que ela chama de mãe? E se ela desejar conhecer a mãe biológica?

E se a mulher que parir, independentemente de ser ou não a mãe biológica, se recusar a entregar o bebê? Quem é a verdadeira mãe - a que forneceu o óvulo ou a que carregou no ventre? Aquela que desejou a criança e pagou por ela, mesmo sem vínculo genético, ou a que não a desejou, topou receber dinheiro para trazê-la ao mundo, cedeu o óvulo e depois voltou atrás? Como fica uma criança que já nasce em meio a um litígio dessa natureza? Duas mulheres brigam por ela – quem ela deverá chamar de mãe?

Há quem considere isso tudo muito normal, da mesma forma que há quem veja a prática como o fim dos tempos. Além disso, não ser considerado crime, por não estar previsto no Código Penal Brasileiro, não quer dizer que seja ético ou moral. No Congresso Nacional, há dezenas de projetos de lei em tramitação para disciplinar a matéria. A discussão é complexa, passando, inclusive, pela redefinição jurídica do que é ser mãe.

Nossa discussão está apenas começando. Quero muito saber o que você pensa sobre barriga de aluguel. Comente este texto. Divulgue-o. Convoque seus amigos a participar também. O que aqui for dito poderá embasar a decisão daquelas criaturas de Deus que nos representam no Legislativo. Então, participe! Feliz Dia dos Pais a todos e até sábado!

Maraci Sant'Ana